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O paciente “Lady Kate”

Em seu livro "A doença como metáfora" *, a escritora, critica de arte e ativista pelos direitos humanos, Susan Sontag (1933 - 2004) diz que quando estamos doentes, nos sentimos e somos vistos como que estrangeiros num país de saudáveis.

 

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Vitor Ribeiro*

” A doença é o lado sombrio da vida, uma cidadania bem pesada. Ao nascer, todos nós adquirimos uma dupla cidadania.: a do reino da saúde e a do reino da doença. E muito embora todos preferíssemos usar o bom passaporte, mais tarde ou mais cedo cada um de nós se vê obrigado, ainda que momentaneamente, a identificar-se como cidadão da outra zona.”
Susan Sontag

Em seu livro “A doença como metáfora” *, a escritora, critica de arte e ativista pelos direitos humanos, Susan Sontag (1933 – 2004) diz que quando estamos doentes, nos sentimos e somos vistos como que estrangeiros num país de saudáveis.
Lembrei-me disso ao ler em um blog que os pacientes de convênios odontológicos são tão exigentes que se parecem com a Lady Kate, personagem do programa Zorra Total, com seu mote: “To pagano!!”. Bem, independente de serem “de convênio” (considerados e tratados por alguns como uma casta inferior de clientes…) ou “particulares”, os pacientes são às vezes chatos porque “estão estrangeiros” por conta de algum problema de saúde que pode ser uma simples gengivite localizada.
Daí pergunto: como se sente um recém-chegado a um país estranho? Um painel de sentimentos prováveis seria: inseguro, medroso, incompreendido, ignorante e com a esperança flutuando. Da mesma forma, um paciente (qualquer que seja a casta!) sente essa desagradável sensação de imponderabilidade e até de impotência, já que é preciso parar e estacionar a vida para poder cuidar da saúde. Aí não tem jeito: qualquer um tende à chatice e a ficar à beira de um ataque de nervos, que no fundo é uma forma de dizer: – me respeite e me trate bem, pois estou me sentindo horrível com tudo isso. Essa é a mensagem.
O trágico é que justamente aqueles que deveriam reconhecer essa súplica escrita no subtexto da exigência absurda do cliente e saber lidar com ela com maestria, fazendo o “estrangeiro” sentir-se casa, em geral, não o faz e acaba indo pelo caminho fácil: rotular o cidadão usando as fortes cores do preconceito. Sim, estou falando de uma parcela cada vez mais crescente de profissionais da saúde, que antes de se especializarem em uma das partes do complexo corpo humano ou em alguma doença, deveriam esforçar-se para serem profundos conhecedores da natureza humana, tornando-se especialistas em gente. Sem essa competência, resta a arrogância.
Para lidar com gente é preciso antes de tudo gostar de gente. Um amigo meu, hábil cirurgião, dizia que havia escolhido o centro cirúrgico como palco, pois não suportava a sala de espera. Creio que lhe era muito perturbador encarar todos aqueles  olhares “estrangeiros” que numa  mesa de cirurgia ficam ocultos atrás de pálpebras fechadas pelos fármacos do anestesista. No fundo é o mesmo processo de reduzir as pessoas a um estereótipo como a Lady Kate, pois fica menos complexo de lidar: é apenas um chato metido a besta porque paga um plano odontológico.
Esses e outros problemas de relacionamento entre dentistas e pacientes vêm da falta de conhecimento, de habilidade e de atitude dos primeiros em lidar com o homo sapiens.  Nossas Faculdades continuam voltadas para a técnica quando o centro de todo processo educacional deveria ser o ser humano integral, principalmente quando se trata de capacitar profissionais da saúde. Soma-se a isso o fato de que nossas associações de classe ainda não lutam por desenvolver nos cirurgiões-dentistas uma visão mais humanizada sobre o paciente, o que seria um contraponto ao tecnicismo acadêmico.
Acho que isso ajudaria os colegas a compreenderem melhor as “Lady Kate” que aportam em sua cadeira e a devolver a elas a cidadania da saúde.

A Doença como Metáfora, Susan Sontag, Quetzal Editores, 1998.

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*Sobre o Autor:

Vitor Ribeiro
cirurgião-dentista e jornalista
vitor.ribeiro@folha.com.br
http://konduto.blogspot.com

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